segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

CEGUEIRA E LITERATURA




Por Andréia Martins
 
    A cegueira ou a falta de uma visão perfeita foram temas de muitos escritores em contos, crônicas e romances. No entanto, alguns lidaram com essa questão na pele, o que acabou influenciando seu processo de escrita e também tornando o relato do assunto mais pessoal.
 

    Um desses escritores é o argentino Jorge Luis Borges. Ele começou a publicar seus poemas na década de 1920 e, em 1930, criou os contos que o tornariam conhecido mundialmente, anos mais tarde. Segundo o escritor Julián Fuks, Borges já sabia que ficaria cego, o que lhe deu tempo para se preparar e apostar em textos curtos, como poesias e contos – estes, sua marca.
 

    Em 1956, por exemplo, quando foi lecionar literatura inglesa e americana na Universidade de Buenos Aires, os médicos já tinham proibido Borges de ler e escrever devido à cegueira, que havia chegado um ano antes. Em 1960, lançou O Fazedor, livro que considera o mais pessoal.
 

    “Ele tinha ficado cego cinco anos antes de lançá-lo, não conseguia mais ler, e ali foi surgindo o Borges dos ditados, das conferências, um Borges oral. Essa obra fala justamente do Borges. O Borges personagem de si mesmo surge n'O Fazedor”, comenta Fuks, que em seu primeiro livro, Histórias de Literatura e Cegueira (Record), narra em crônicas o final da vida de três escritores clássicos que perderam a visão: Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce. No caso do argentino, Fuks diz que os textos curtos são fruto de um Borges “mais oral”.
 

    Em O Fazedor, dois textos falam da cegueira: Poema dos Dons e o conto que dá nome ao livro. “Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava ficando cego, gritou; o pudor estoico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem menoscabo. ‘Não verei mais (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico nem este rosto que os anos vão transformar’”, escreveu Borges em "O Fazedor".

    O escritor irlandês James Joyce, autor de Ulysses, não perdeu totalmente a visão, mas sofreu com um glaucoma. “O principal de sua obra foi escrito antes desse estado de quase cegueira, embora o problema progressivo de visão, devido ao glaucoma, o tenha acompanhado por bastante tempo. A dificuldade foi maior na fase final de criação de seu último romance, o Finnegans Wake (1939). Ele contou com a colaboração de Samuel Beckett, a quem ditava o texto”, diz Marcelo Tápia, doutor em teoria literária pela USP, diretor do museu Casa Guilherme de Almeida e organizador do Bloomsday, evento mundial em homenagem à obra Ulysses, em São Paulo.
 
    Segundo Tápia, uma relação possível entre a obra de Joyce e seu problema de visão é a “importância que a sonoridade das palavras adquire em seus textos: o efeito sonoro parece ser um aspecto prioritário de sua escrita”, diz. Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare in Company, em Paris, e editora de Joyce, conta no livro que leva o nome de seu estabelecimento que as provas enviadas ao escritor eram sempre aumentadas para que ele pudesse revisá-las.

    “Ele procurava seguir com seu trabalho, apesar da dificuldade”, conta Tápia. “Há um artigo de Eisenstein em que o cineasta russo relata a ocasião em que procurou Joyce para mostrar-lhe um filme seu, e, após Joyce tê-lo ‘assistido’, ambos conversaram sobre o trabalho; Eisenstein sentiu-se culpado, posteriormente, ao se dar conta de que Joyce, embora o tivesse recebido tão bem, estava quase cego”.
 

OUTROS AUTORES

    O autor de Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley, viveu quase três anos na escuridão, aos 17 anos, em decorrência de uma queratite pontuada. Foram 18 meses totalmente cego e o restante com dificuldades para enxergar.
 
O escritor Aldous Huxley
 

    “As coisas foram assim até o ano de 1939, quando, a despeito de um grandioso e reforçado óculos, eu vi a tarefa de ler cada vez mais difícil e fatigante. Não poderia haver dúvida disso: minha capacidade de ver estava firmemente e bem rapidamente deteriorando”, escreveu ele em A Arte de Ver, de 1942, onde fala sobre sua experiência e melhora com o método Bates, que optou pelo descarte dos óculos e por exercícios para fortalecer o globo ocular. Mas a qualidade de sua visão ainda é incerta. Uns dizem que ele nunca a recuperou totalmente; já outros afirmam que as lentes de aumento foram suficientes para ajudá-lo a enxergar melhor ao longo da vida.
 

    O britânico John Milton, considerado o maior poeta inglês depois de Shakespeare, ficou cego aos 44 anos, quando estava preso, devido a um glaucoma. Sua obra mais famosa, O Paraíso Perdido, sobre a criação de Adão e Eva, foi totalmente ditada. A preparação do livro levou seis anos, de 1658 a 1664. A publicação aconteceu em 1667. O problema não impediu o escritor de produzir. Já o autor de Os Lusíadas, Luís de Camões, escreveu o livro cego do olho direito e publicou-o em 1572. A perda da visão ocorreu após uma batalha em 1524.

    No caso do brasileiro João Cabral, a cegueira fez dele um “ex-escritor”, segundo o próprio, após o erro médico que o deixou cego em 1993. Não escreveu mais, pois dizia que precisava ver o papel. Seu último poema foi “Pedem-me um Poema”, publicado na revista Terceira Margem, em 1998, um ano antes de morrer. Nos primeiros versos, fica claro que a visão era primordial para sua escrita: “Pedem-me um poema / um poema que seja inédito, / poema é coisa que se faz vendo, / como imaginar Picasso cego?”.
 
 

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