domingo, 1 de março de 2015

A REAL CLEÓPATRA, MUITO ACIMA DA LENDA - PARTE 2


     O Oriente era simpático a Pompeu. O Egito, em particular, lhe fornecia trigo e soldados. O exército acampado em Alexandria tinha devoção pelo vencido de Farsália. Após aquela derrota, Pompeu fora buscar asilo no Egito, onde tinha certeza de encontrar adeptos. Na época, Cleópatra deixara Alexandria. A coalizão formada por Potino, Aquilas e Teódoto havia instigado o povo contra ela. Cleópatra tivera a imprudência de querer se livrar de seus incômodos ministros, e agora eles a obrigavam a fugir para salvar a própria vida. A facção de Potino tinha conspirado de tal maneira que Ptolomeu, inteiramente dominado por eles, aparentava ser o verdadeiro rei, enquanto a sucessora de Aulete era vista como intrusa e usurpadora. Cleópatra partiu rumo ao deserto para reunir algumas tribos nômades que aliciara, contra a promessa de ricas recompensas.

     A idéia de invadir o Egito seduzia esses senhores das areias, maravilhados com relatos sobre as suntuosidades alexandrinas. Cleópatra não teve dificuldade de reunir um exército à frente do qual, então com 20 anos de idade, guerreou contra o Aquilas.

     Este estava pouco inclinado a aceitar tal conflito; os olhares voltavam-se para Farsália, onde o poderio de Pompeu havia desmoronado. Todos se perguntavam quem seria o novo senhor. Os três ministros, que controlavam como uma marionete o jovem Ptolomeu, único rei do Egito desde a fuga de Cleópatra, tremeram quando Pompeu, derrotado e em fuga, pediu a hospitalidade do Egito.

     Cleópatra tinha toda simpatia por Pompeu; quando ainda era rainha, ela havia acolhido seus pedidos de ajuda. Seu jovem irmão e seus ministros só levavam em consideração os perigos que poderiam advir de oferecer asilo político ao fugitivo. Todavia, não ousaram recusar o pedido, pois a tradição mandava que se respeitasse o direito de asilo, até como dever sagrado. Plutarco relata os termos em que o Conselho de ministros debateu essa delicada questão: "Receber Pompeu, disse Potino, é escolher César como inimigo e Pompeu como senhor; recusá-lo, é fazer com que Pompeu nos acuse de tê-lo expulso, e César de o termos obrigado a persegui-lo. O melhor, portanto, é mandar buscá-lo e matá-lo. Assim, submeteremos um, sem precisar temer o outro. Um morto não precisa ser temido".


     Cleópatra não tomaria uma decisão dessas caso ainda fosse a senhora do reino. Mas como estava ausente, a covardia prevaleceu. Pompeu foi avisado de que o Egito lhe oferecia hospitalidade e Aquilas foi lhe dar as boas-vindas. Existem poucos episódios tão trágicos na história quanto este, de pérfida recepção, enquanto se tramava assassiná-lo. Enquanto o exército se aglomerava à margem, tendo à frente um jovem Ptolomeu vestido de púrpura, e a frota egípcia se preparava para controlar o mar, Aquilas e os carrascos partiram numa simples barca, para buscar Pompeu. O general tinha consigo o centurião Salvius e o tribuno Septimius.

     Sem desconfiar, Pompeu se despediu da mulher Cornélia e subiu na barca. "A distância era longa, da galera até a margem", conta Plutarco: "Como durante o trajeto ninguém lhe dirigisse uma única palavra amável, ele se voltou para Septimius. \\`Se não estou enganado, nós já não guerreamos juntos?\\`. Septimius assentiu com a cabeça, sem proferir nenhuma palavra, sem denotar interesse. Fez-se novamente um profundo silêncio. Pompeu tomou de um pequeno caderno, no qual havia redigido um discurso em grego, que pretendia dirigir a Ptolomeu, e pôs-se a ler. Quando já se aproximavam da terra firme, Cornélia olhava do alto da galera, junto de seus amigos.

     Ela começava a se tranqüilizar, vendo os homens do rei aproximar-se em massa do desembarque, como que para recebê-lo com honras. Naquele momento, Pompeu tomou da mão de seu escravo liberto, Felipe, para se erguer mais facilmente. Septimius desferiu o primeiro golpe de espada por trás, trespassando seu corpo; depois dele, Salvius e em seguida Aquilas sacaram seus punhais. Segurando a toga com as duas mãos, Pompeu cobriu com ela o rosto, e sem nada dizer ou fazer que fosse indigno dele, emitindo simplesmente um suspiro, abandonou seu corpo aos golpes".

Laços de intimidade
     Alguns dias mais tarde, as galeras de César surgiram diante de Alexandria. Teódoto apressou-se em lhe levar a cabeça de Pompeu, como garantia da devoção do Egito. Talvez temendo uma armadilha, César desembarcou com um exército de cerca de 4 mil soldados e um milhar de cavaleiros, que acamparam na cidade.

     O objetivo de César era mediar a questão entre Cleópatra e seu irmão, em benefício de Roma. Queria, sobretudo, que ambos se dessem conta de que estavam à mercê de Roma, e que não havia sentido em brigarem por uma coroa despida para eles de qualquer realeza. Era pouco provável, no entanto, que César pretendesse suprimir com uma penada a autoridade deles para substituí-los por um simples governador romano. Certamente pretendia nomear um dos dois irmãos, ao qual deixaria o título de rei, mas que não passaria de um funcionário de Roma. Assim, Cleópatra e Ptolomeu, ela na fronteira do deserto e ele em Pelusa, receberam o convite de César para se apresentar diante dele a fim de acolher suas instruções. Ptolomeu hesitava em obedecer.
     Cleópatra, ao contrário, compreendeu que era preciso rapidamente ir a César. Ela dispensou seu exército e abriu mão de qualquer cerimônia: pôs-se em marcha com seu escravo, Apolodoro, um siciliano habilidoso. Ele enrolou a rainha num tapete, que colocou sobre o ombro, e entrou no palácio à procura de César, a quem dizia querer entregar o presente. Foi assim que aconteceu o primeiro encontro entre o general romano e a herdeira dos faraós, numa atmosfera de comédia bufa, que estabeleceu de imediato entre eles ligações de intimidade com as quais Cleópatra contava para assentar seu império sobre o coração e o espírito de César.

     Aquela mulher não demorou a conquistar o conquistador. Juntos, eles enfrentaram os ataques do exército de Aquilas e da população rebelada, que não aceitava nem César nem Cleópatra, e pretendia devolver o trono ao jovem Ptolomeu. Os perigos comuns fortificaram a ligação, mas a situação era crítica. Sitiados na parte alta da cidade, não podiam ir de encontro à frota romana. A frota egípcia tinha sido incendiada por ordem de César. Os adeptos do jovem Ptolomeu receberam reforços providenciados pela princesa Arsinoé, que não tinha mais do que 15 anos de idade, mas que exibia bravura e ambição. Ela levava consigo sua corte, seu preceptor, Ganimedes, e seus empregados. O jovem Ptolomeu permitira-se cair na armadilha da reconciliação e havia voltado para Alexandria, onde César o mantinha sob controle.

     Arsinoé foi a agente da guerra contra César e Cleópatra. No entanto, seus generais brigavam entre si, e Ganimedes mandou assassinar Aquilas, para dominar sozinho o exército. Essas discórdias enfraqueceram os sitiantes, mas os sitiados também viam sua situação piorar. Tinham sido privados de água; César perdera muitos dos seus ao tentar uma saída. Quase caiu nas mãos do inimigo. Como os reforços pelos quais esperava não chegavam, ele quis ganhar tempo e negociou com os rebeldes: eles exigiam a devolução do jovem Ptolomeu. César concordou e assim perdeu o refém que lhe permitia manter os alexandrinos em xeque.

     Certo dia, foi informado de que vinha, do Oriente, um exército em seu socorro, comandado por Mitrídates de Pérgamo. Imediatamente, César e Cleópatra, que cavalgavam juntos à frente de um pequeno grupo de guerreiros, deixaram a cidade, para se juntar a Mitrídates e com ele se precipitar sobre os alexandrinos. Em poucas horas o exército de Ptolomeu e Arsinoé foi dizimado e expulso. Ptolomeu desapareceu; nem seu cadáver foi encontrado.
      A resistência alexandrina havia sido rompida. A população daquela cidade, tão pouco egípcia por sua raça e costumes, não mais oprimiria o verdadeiro Egito. Ela não mais se oporia aos projetos de Cleópatra, que, senhora dos sentidos e da vontade de César, poderia realizar seus projetos.

   
      Para ela, o futuro de César não deveria se limitar ao mundo romano, mas estender-se. Queria que ele aspirasse ao Império do mundo, como Alexandre. Este, porém, não enfrentara barreiras como as erguidas pelas instituições romanas e, sobretudo, os interesses pessoais e muitas vezes mercantis que motivavam senadores e cavaleiros. César era cativo de uma rede de formalidades, obrigações e deveres.

      Sabia que se os democratas desconfiassem dessa tendência à realeza não hesitariam em assassiná-lo. Cleópatra tinha sonhado fazer dele seu parceiro, a rainha do império do qual ela continuaria sendo o rei. Mas ele mesmo não se conformava com esse papel.

     Contentou-se em passear pelo Egito em companhia dela, descendo o Nilo, mas quando a primavera voltou - momento em que Roma já manifestava sua impaciência -, ele deixou Cleópatra e partiu para o Ponto, a fim de esmagar a revolta de Farnaces. Ao mesmo tempo que os veteranos das legiões guerreavam, Cleópatra dava à luz um filho de César, a quem ela chamou Cesarião. A audácia chocou os egípcios.

     O clero dificultou ainda mais as coisas, ao afirmar, segundo a tradição, que a criança era filho de Rá, que havia assumido a aparência de César. Salvava, assim, a legitimidade e o caráter sagrado da realeza. Quando entrou em Roma coroado de louros, César reconheceu o filho e dedicou à Vênus Genitrix uma estátua de ouro que representava Cleópatra.

      Ele, entretanto, nunca mais voltou ao Egito. Cleópatra foi para Roma, o que causou escândalo, em especial aos puritanos, pois César era casado com Calpúrnia. Tamanha imprudência promoveu a união dos democratas e puritanos, uns recriminando a César o fato de ele querer tornar-se rei, os outros temendo que ele repudiasse a esposa para se casar com a egípcia, o que criaria dificuldades incontornáveis e poria em perigo a República. Se ela tivesse podido levar César para Alexandria, o centro de ação mundial teria sido deslocado. Abrindo mão de ser somente um homem de política romano, César teria se tornado rei do Egito primeiro, e em seguida imperador do mundo oriental. Por maior que fosse o fascínio de Cleópatra e seu poder sobre o homem que amava, César não compartilhava inteiramente suas esperanças quiméricas. Morreu, aos pés da estátua de Pompeu, assassinado por "republicanos" hostis à ditadura e inimigos da "realeza".

     Cleópatra pode ser considerada, de certo modo, responsável por sua morte, em função das instigações e apelos que fazia a seu orgulho, ambição e apetite de poder. Apressou-se em deixar Roma, com o pequeno Cesarião, para escapar à vingança daqueles que a acusavam de ter tido má influência sobre César. De volta a Alexandria, livrou-se do irmão que era uma ameaça e elevou ao poder Cesarião, então com 3 anos de idade. O exército romano tinha partido do Egito rumo à Ásia, para encontrar Dolabela, tenente de César que combatia as tropas senatoriais comandadas por Brutus e Cassius. Cleópatra recebeu de Dolabela o pedido de apoio das tropas egípcias, e de Cassius o de enviar sua frota aos "libertadores", mas manteve-se neutra nessa guerra civil que opunha "cesarianos" a "republicanos".

      Ela esperou que o conflito que dividia Roma terminasse, para fazer o exame da situação e verificar qual proveito podia tirar dela. Uma vitória dos republicanos não era desejável, pois ela sabia que não tinha poder sobre libertários austeros como Cassius e Brutus. Ao contrário, o sucesso dos cesarianos lhe daria uma possibilidade de êxito, se fosse Marco Antônio o sucessor de César. Infelizmente, ele dividia o comando com Otávio, que tinha a fama de ser alguém consumido pela ambição, frio e calculista, que se furtaria a fazer o jogo da ambiciosa estrangeira. Somente Marco Antônio parecia útil para a realização de seus grandes projetos.

      Após a vitória de Filipos, na segunda metade do ano 42, os chefes do exército cesariano dividiram o poder. Otávio retomou Roma, pois para ele era mais importante permanecer em contato com o Senado e suas facções, enquanto Marco Antônio, tentado pelo papel de rei oriental que era incentivado a desempenhar, de temperamento mais romanesco do que seu parceiro de poder, ficou no Oriente. De natureza generosa, ardente e acessível às ilusões românticas da glória e do amor, ele era uma vítima inteiramente desenhada para Cleópatra. Todavia, ela não tomou a iniciativa. Esperou que ele solicitasse a aproximação.

      Marco Antônio estava na Sicília quando convidou Cleópatra a discutir a situação política da Ásia. Ela atendeu ao chamado. Fez-se acompanhar de um cortejo fantástico e teatral, cujos elementos, emprestados à mitologia grega, lembravam o séquito da própria Afrodite. Soube temperar, no entanto, a requintada elegância helênica com cores de desregramento romano, vulgar e violento o bastante para atordoar Marco Antônio. Ele caiu na armadilha. Conseguiu que Marco Antônio mandasse executar todos os seus inimigos pessoais, em especial sua irmã Arsinoé. Cleópatra o recompensou com delícias da "vida inimitável" que os historiadores não se cansam de descrever.

Nenhum comentário:

Postar um comentário