domingo, 17 de fevereiro de 2013

QUINTA-FEIRA NEGRA (PARTE FINAL)


Confusa e ofegante, dona Doca despediu-se dos siameses e partiu em direção ao centro, tomando aquela que um dia tinha sido a famosa Rua do Arvoredo, onde segundo diziam, uma outra Catarina e seu homem vendiam lingüiça feita de carne humana.  Ao ver-se na Rua da Praia, em meio à movimentação típica de uma manhã de Sexta-Feira, dona Doca sentiu a cabeça rodar. O casamento da filha ameaçado por uma baronesa morta era-lhe uma ideia inacreditável por um lado, mas assustadora por outro. Na rua, as pessoas passavam seguindo seus afazeres, algumas trabalhando, outras passeando apenas, todas imunes ao drama do casamento. Logo lá na frente, um policial parecia rendido no meio de uma confusão: duas mulheres haviam sido provocadas de forma desagradável por um bêbado, e não tinham pensado duas vezes em dar-lhe uma surra com suas bolsas e sombrinhas. Dona Doca caminhou até chegar diante da vitrine da “Especialista”, a fábrica de roupas brancas para senhoras onde Catarina havia comprado o seu enxoval e ficou contemplando a manequim vestida de noiva. O que poderia haver de tão complexo com um casamento? Tudo tão simples... As pessoas decidiam se casar, marcavam a cerimônia, convidavam os amigos e as famílias, iam até a igreja e o assunto se revolvia. Mas agora, com sua única filha, a linda Catarina, tinha que haver aquela história horrível para estragar tudo!
Feliz daquela manequim – pensou dona Doca -, que nunca se casa e vive eternamente como as noivas um dia antes do casamento, na expectativa da felicidade eterna, sempre de branco, sempre bonita, sempre noiva. Às noivas de menos sorte, cabia-lhes ter que tirar o vestido depois da festa e encarar a vida real, o cotidiano... E às noivas de menos sorte ainda, cabia-lhes o azar de um escravo fantasma a barrar-lhes o casamento por causa de uma baronesa malvada, como era o caso de Catarina. Como contar aquela história para a filha? Como aquilo tudo chegaria até os ouvidos do Menelau, o noivo? Dona Doca não sabia. Voltou para casa e depois do almoço ficou rodeando Catarina, sem saber por onde começar com aquele assunto. Por fim, após muitos ensaios, chamou a jovem para conversar e contou-lhe da consulta com os siameses e da previsão macabra acerca da igreja e do casamento. A resposta de Catarina foi a menos esperada: rindo de tudo aquilo como se estivesse rindo de uma comédia encenada no Teatro São Pedro, a moça não deu nenhuma atenção aos temores da mãe.
Estava Catarina mais envolvida com os últimos preparativos do que com qualquer mau agouro. A única coisa que não aceitaria era que o noivo a visse antes do casamento com o seu lindo vestido branco! Isto sim dava azar! Tanto, que quando os primeiros pingos de chuva começaram a cair sobre Porto Alegre, na Quinta-Feira Santa daquele fatídico ano de 1941, Catarina não associou em nada aquela garoinha que vinha timidamente do céu com a previsão catastrófica que havia para a cerimônia do seu matrimônio.
Choveu durante a páscoa e durante as semanas seguintes. Se no início a chuva era encarada como algo natural, aos poucos, começou a causar os seus primeiros transtornos. Dona Doca, que calada ia acompanhando as notícias acerca dos primeiros desabrigados, tentava em vão não pensar na profecia dos xifópagos. O casamento estava marcado para dali a menos de um mês, e nada faria Catarina voltar atrás. O pânico só tomou conta da boa senhora quando, no dia 22 de abril, dia em que se comemorava o descobrimento do Brasil, o céu foi invadido por nuvens negras que desabaram na forma de um violento temporal. Choveu como nunca havia chovido, e não parou mais de chover. O Guaíba passou a mostrar o seu lado mais assustador e foi enchendo cada vez mais, de forma que a cidade viu-se invadida pelas águas, e a Guerra da Europa e a ascensão de Hitler perderam a importância diante daquele alagamento hediondo.
- Catarina, o centro todo está debaixo d’água! Até a prefeitura foi alagada! O coitado do prefeito Loureiro teve que sair de barco para voltar para casa! – abismava-se dona Doca, que diariamente ia transmitindo para a filha o caos que a cidade virara com a enchente.
Mas Catarina parecia impassível com a cheia. Não era a primeira vez que chovia exageradamente em Porto Alegre, e nem seria a última. E no mais, para elas que viviam ali, no alto da Independência, os malefícios da chuva ainda eram contornáveis. Na semana seguinte, quando diminuísse a chuva, ela iria com a mãe até a Igreja das Dores a fim de acertar os detalhes da decoração. Só que não parou de chover, e na semana seguinte, ao sair do palacete onde morava, Catarina finalmente deparou-se com a seriedade da situação. Do alto da Rua da Praia, a noiva desconheceu a paisagem com a qual estava acostumada desde criança: o Mercado Público parecia uma plataforma rodeada por um oceano marrom e por barquinhos que tentavam transportar pessoas e ajudar aos desabrigados.
Voltou a noiva para casa assustada, fugindo com a mãe das águas e dos ratos que agora procuravam os lugares mais altos para se refugiarem. Os ratos de que falara o siamês... A cachoeira que deveria ter virado a escadaria da igreja onde Catarina pretendia triunfar de branco, com seu véu comprido... Tudo estava se concretizando! Um escravo e uma baronesa estavam em guerra e a cidade estava sendo tragada por um dilúvio moderno, remoía-se dona Doca sem saber o que fazer. Chegou a propor ao marido que usassem da autoridade de pais e que obrigassem Catarina a adiar o casamento e a mudar de paróquia, mas ele foi contra. Que tinha a ver um casamento com uma enchente? Idéia mais descabida a da mulher! Entretanto, dona Doca não descansou. A cidade ficava dias na escuridão, sem luz, atirada ao pânico dos desabrigados e dos que tentavam salvar as poucas coisas que a água não tinha engolido, e era tudo culpa do casamento da filha!
Na Segunda-Feira da semana do casamento, chegou a notícia que derrubou Catarina: a cerimônia do seu matrimônio, assim como todas as demais previstas para aquela semana, estavam adiadas. Que se desse um jeito, que se avisassem os convidados, que se conformassem as noivas e os noivos, mas não tinha como se casar ninguém diante de uma calamidade como aquela. Catarina foi contra, chorou, berrou, provocou ela própria uma enchente dentro de casa com as suas lágrimas, mas não teve jeito. Porto Alegre virara um mar de chocolate e não haveria mais casamento.
O Menelau tentou confortá-la. Iriam se casar assim que aquele caos todo findasse, não tinha ela motivos para desesperar-se. Já tinha avisado a sua família em Pelotas e estava tudo certo.
Todavia, o golpe de misericórdia para a infortunada Catarina ocorreu naquela Quinta-Feira, dia 8 de maio, quando o Guaíba bateu todos os recordes ao subir 4,75 metros e quando ela, ao abrir as portas do seu roupeiro, deparou-se com um rato cinza e de olhos vermelhos, roendo o seu vestido de noiva. Ali, Catarina desabou. Era o mau agouro que se confirmava, a mãe tinha mesmo razão! Os siameses da Cidade Baixa tinham acertado na previsão: o seu casamento estava condenado! Que se trocasse a igreja, que se mudassem os planos! Aos prantos, a noiva correu para a mãe e abdicou do seu sonho de descer a escadaria da Igreja das Dores com seu véu de serpente. Iriam conseguir outra igreja, assim que a enchente terminasse, uma igreja qualquer, que não tivesse o fantasma de um escravo a barrar a porta por causa de uma baronesa malvada.
Dona Doca finalmente respirou aliviada. A maldição que o casamento da filha desencadeara sobre a cidade estava chegando ao fim. De fato, após aquela Quinta-Feira que entraria para a história de Porto Alegre como “Quinta-Feira Negra”, as chuvas se abrandaram, e ainda que lentamente, as águas foram recuando e devolvendo aos porto-alegrenses a sua paisagem natural, mesmo que modificada pela grande enchente. Todas as vezes que ia até o Mercado Público e deparava-se com a mancha linear que as águas do Guaíba marcaram no prédio, a boa dona Doca lembrava-se da história do casamento de Catarina, da enchente de 1941 e do rato cinza e de olhos vermelhos que ela sorrateiramente plantara no roupeiro da filha, com o único propósito de salvar a cidade do maior dilúvio que se teve conhecimento na Capital do Rio Grande. Dona Doca então sorria envaidecida, convicta do seu secreto heroísmo e voltava para casa feliz. 
Conto de Cristiano Refosco

OBS: conto registrado na Biblioteca Nacional. O uso do mesmo sem a prévia autorização do autor constitui violação de direito autoral.

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