Bengkala é uma pequena aldeia localizada
ao norte de Bali, na Indonésia, e que apresenta uma peculiaridade
bastante interessante: por causa de uma questão congênita, praticamente
2% de toda a população é composta de pessoas surdas. Trata-se de uma
média altíssima, tornando única a experiência dessa vila.
Lá,
as pessoas surdas desenvolveram uma língua de sinais chamada Kata
Kolok, que é utilizada não apenas por elas próprias, mas também pelos
ouvintes.
O jornalista
norte-americano Andrew Solomon esteve em Bengkala em 2008 e, no livro
Longe da Árvore (Companhia das Letras, 2013), relatou que todos por ali
“cresceram com pessoas surdas, e todos conhecem a língua de sinais
exclusiva usada na aldeia, por isso a distância entre a experiência das
pessoas surdas e não surdas é menor do que talvez em qualquer outro
lugar do mundo”.
Ainda de
acordo com Solomon, em Bengkala as pessoas tratavam a surdez e a audição
da mesma forma como, em outras sociedades, a altura ou a raça eram
concebidas, como simples atributos dos indivíduos. Após a visita, o
jornalista concluiu que “onde a surdez não prejudica a comunicação ela
não é uma desvantagem”.
Façamos um interessante exercício de
abstração a fim de analisar a questão seguinte: se submetêssemos os
habitantes surdos de Bengkala à legislação brasileira, é certo que eles
seriam enquadrados no conceito jurídico de deficiência?
E, conforme estabelece o art. 2º da nova lei, “considera-se
pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação
com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Trata-se
de conceito aberto e dinâmico, cujos contornos dependerão sempre da
análise dos elementos existentes no caso concreto, não sendo possível,
assim, uma definição apriorística da questão.
É
preciso destacar, antes de mais nada, que a lei distingue a limitação
funcional apresentada pela pessoa da deficiência. A ausência de visão, a
surdez ou a condição física do cadeirante, por exemplo, são limitações
funcionais, reconhecidas como atributos da pessoa e inerentes à
diversidade humana. A deficiência, por sua vez, tem caráter relacional,
por consistir na interação de tais atributos com barreiras existentes no
meio social, cujo resultado é a dificuldade ou o impedimento para o
acesso e exercício de direitos em igualdade de condições com as demais
pessoas.
A deficiência,
portanto, é externa à pessoa, por advir da inacessibilidade encontrada
no meio, que resulta em uma desvantagem econômica ou social para pessoas
que estão fora do padrão de pessoa média, standard de pessoa. Em última
análise, decorre da incapacidade de toda a sociedade em se organizar
adequadamente para ensejar a convivência de pessoas que estão fora dos
padrões dominantes.
E, na
medida em que se trata de um problema estrutural, é responsabilidade do
Estado e de toda a sociedade eliminar os obstáculos existentes para que
pessoas com limitações funcionais participem ativamente da vida em
sociedade.
Apenas para aprofundar um pouco mais essa
reflexão e para reforçar a ideia de que as limitações físicas,
sensoriais, mentais e intelectuais não se confundem com o conceito de
deficiência previsto no direito brasileiro, atente para o fato de que
uma pessoa que apresente uma limitação física severa em um ambiente
acolhedor e aberto à diversidade, talvez não vivencie a experiência da
deficiência (por não sofrer o problema da exclusão social), ao contrário
de alguém com uma limitação física branda que esteja submetida a um
meio inacessível e fechado ao “diferente”, marcado por grande
preconceito.
Neste ponto
retomamos o caso dos habitantes surdos de Bengkala que, se fossem
submetidas ao regime jurídico previsto na Lei Brasileira de Inclusão,
provavelmente não seriam reconhecidas como pessoas com deficiência. Ao
que tudo indica, nesta pequena aldeia a surdez não se revela uma
desvantagem econômica e social, na medida em que as pessoas surdas e os
ouvintes se comunicam sem dificuldades e participam da vida social em
uma situação de paridade. Em Bengkla, ao que parece a surdez é valorada
de forma neutra, sem que lhe seja atribuída um caráter negativo ou de
“defeito”.
Conforme a lei pátria, portanto, a
deficiência não se confunde com as limitações funcionais referidas
anteriormente, sendo fruto da vivência de exclusão social e econômica
imputada às pessoas que apresentam essas mesmas limitações funcionais. E
essa exclusão, é importante destacar, advém não de fatores intrínsecos a
tais pessoas, mas da recusa de adaptação do meio e da intolerância,
como a ausência de rampas de acesso para cadeirantes, falta de adaptação
física do transporte público, recusa de matrícula em escolas públicas
ou particulares para crianças e jovens autistas ou com síndrome de Down,
recusa de acesso ao emprego ou pagamento de salários indignos tão
somente por se tratar de pessoa cega ou surda, etc.
Por
isso ter a exata noção do conceito de deficiência é tão importante. É o
primeiro passo para compreender toda a sistemática jurídica de proteção
a esse grupo populacional em nosso país.
Infelizmente
não é raro, no meio jurídico, entre pessoas que teriam o dever de
conhecer o direito e a ciência do direito, o emprego de expressões como
“deficientes” ou “portadores de deficiência”, fato que não representa
mera confusão terminológica ou falta de rigor técnico, sendo mesmo fruto
de desconhecimento da matéria e apego a parâmetros ultrapassados na
concepção do tema.
FONTE: http://justificando.cartacapital.com.br
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