segunda-feira, 19 de outubro de 2015

NOVELAS E CENSURA NA DITADURA

 
 
 
    Existia censura à cultura no Brasil desde o Império. Teatro, música, livros, cinema. Segundo documentos da DCDP, foi com “Quem casa com Maria?”, de 1965, que o órgão deu início aos trabalhos. Mas Lima Duarte lembra que a primeira novela brasileira, “Sua vida me pertence”, exibida pela TV Tupi em 1951, teve o beijo do capítulo final censurado. Virou um simples selinho.

    Todo corte era político, mas prevalecia a censura aos costumes, àquilo que, para os censores, atentava contra a ordem, a moral e os bons modos. Embora até isso tivesse um pano de fundo político, o entendimento era de que a destruição de tradicionais valores morais e familiares seria o primeiro passo para a instalação do comunismo no Brasil. Os pareceres levantados pelo EXTRA mostram que havia diretrizes bem definidas. Coerentes com o que a ditadura acreditava – e temia.

    Dias Gomes estava destruído em agosto de 1975. A censura a “Roque Santeiro” trazia de volta um gosto amargo que ele não experimentara na televisão. A sensação era a mesma que tantas vezes tivera no teatro. Ou quando era diretor artístico da Rádio Nacional e foi demitido do cargo pelo primeiro Ato Institucional, que suspendeu os direitos políticos de todos os “subversivos”. Janete Clair, casada com ele desde 1950, abraçou como questão de honra a missão de escrever “Pecado capital”. Dizia que a família não perderia o horário das oito.
 
Dias Gomes e Janete Clair
 


    Com o veto a “Roque”, o tempo de felicidade parecia ter ficado para trás. Dias Gomes havia se encantado com os recursos que a televisão lhe proporcionava. Com “O Bem Amado”, levado ao ar dois anos antes, foi assim. Primeiro uma peça foi encenada em 1968 por um grupo amador de Pernambuco. Depois, em 1970, chegou ao palco carioca, numa montagem que desagradou ao dramaturgo. Quase se tornou um filme, mas não houve recursos. Na TV, tudo foi diferente. Primeira novela em cores no Brasil, tinha no elenco Paulo Gracindo, Lima Duarte, Emiliano Queiroz, Milton Gonçalves, uma moderna cidade cenográfica e a possibilidade de levar a uma plateia de milhões as sátiras e as críticas políticas e sociais tão caras ao autor. Odorico virou um personagem nacional.
    A televisão havia viabilizado a carreira do autor. Antes, quando deixou a Rádio Nacional, suas peças passaram a ser sucessivamente censuradas, e Janete sustentava a casa. Convidado em 1969 por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, a trabalhar na TV Globo, decidiu aceitar o convite, já feito antes a ele pela TV Rio e recusado. Primeiro, assinou com o pseudônimo Stela Calderón a novela “A ponte dos suspiros”, lançada pela cubana Glória Magadan e por ele assumida.
 
    Depois, viria “Verão vermelho”, em que capoeiristas, coronéis, jagunços e outros tipos brasileiros desfilavam no universo característico de sua obra. Ainda escreveria outras 13, seguindo, na década de 1970, o ritmo de quase uma por ano. Juca de Oliveira, que protagonizou em 1976 “Saramandaia”, a primeira novela de Dias Gomes após “Roque”, avalia que ele soube driblar bem a censura.
 
— Em “Saramandaia”, falava-se sobre o coronelismo, a ditadura, a censura, a liberdade de expressão. Mas ele camuflava, era a primeira vez que nós entrávamos em contato com o realismo fantástico na televisão. Com isso, ele driblava. Era uma comédia, mas, ao mesmo tempo, uma crítica – lembra o ator.
 
    Membro do Partido Comunista, Dias Gomes era um nome conhecido dos órgãos de repressão. Suas atividades foram acompanhadas por arapongas mesmo após o fim do regime. Já na democracia, em fevereiro de 1990, o ainda ativo Centro de Informações da Aeronáutica relatava ao Serviço Nacional de Informações que, dois meses antes, Dias Gomes havia viajado para os Estados Unidos.
 
     Janete também tinha seus passos observados. Seu nome consta em diversos informes, sempre atrelado ao de Dias Gomes. A autora estreou na TV Globo em 1967, para assumir a confusa “Anastácia, a mulher sem destino”. Fez um terremoto matar a maior parte dos personagens e, assim, conseguiu simplificar a história. Desde 1963, já havia escrito oito novelas para as TVs Rio, Itacolomi e Tupi. Na Globo, foram outras 17 obras. Foi a única novelista da história da televisão a alcançar índices de audiência de 100%.
 
    Mas nada disso — ou exatamente por causa de tudo isso — era suficiente para aplacar a censura. O rigor dos censores sobre as novelas de Janete aumentou a partir de “Pecado capital”, quando ela mesclou o realismo típico de Dias Gomes a suas românticas histórias. A partir daí, tornaram-se comuns as viagens da autora a Brasília, para negociar diretamente com a direção da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Quando “Duas vidas” era exibida, em 1977, o diretor da repartição, Rogério Nunes, escreveu à TV Globo cobrando que Janete cumprisse o que havia sido acordado.
 
    Em diversas cartas aos censores, a autora brigou por seus textos, por seus personagens, expondo os argumentos sobre por que havia escrito dessa ou daquela forma cada cena. Em 11 de janeiro de 1977, escreveu ao diretor da Polícia Federal, Rogério Nunes. A remetente, nas palavras dela, era “uma autora perplexa e desorientada” com os cortes que vinham sendo feitos em “Duas vidas”. Fora as restrições aos romances da trama, até a fala de um personagem reclamando da poeira causada pela escavação do metrô — uma obra do governo — havia sido cortada.
Diretor da maioria de suas novelas, Daniel Filho acredita que Janete escrevia em parceria com o marido. E Dias Gomes com Janete:
 
    — Tenho certeza de que eles (Dias e Janete) escreviam juntos. Pelo menos uma vez por semana eu almoçava na casa da Janete, e era agradabilíssimo. Cada um tinha o seu escritório. Ela escrevia a novela dela e ele escrevia a dele. Mas, de uma forma ou outra, ele palpitava na dela, e vice-versa. Os dois se completavam.
 
 
 
 



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