domingo, 11 de outubro de 2015

A HISTÓRIA DO TRATAMENTO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - PARTE 2





    Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2009) afirma que na Baixa Idade Média se inicia a transição para o paradigma assistencialista, no qual, não obstante a reprodução do pensamento aristotélico, Tomás de Aquino substitui a concepção eugênica do modelo da eliminação, pela caridade cristã.

    A Igreja Católica acolheu essa perspectiva e desenvolveu em suas igrejas as instituições de caridade, que se baseavam no sentimento de pena das pessoas com deficiência e de dever de gratidão para com Deus, pela perfeição e pela normalidade dos fiéis não deficientes. Aqui, a pessoa com deficiência deixa a condição de objeto ou de animal, típicos da fase de eliminação, e assume a condição humana de dependente, ou seja, de segunda categoria.

    Nem só de perseguição e isolamento social viveu a pessoa com deficiência no início da civilização. Assim, antes mesmo da Baixa Idade Média, algumas civilizações como os hindus, os atenienses e os romanos cuidavam dessas pessoas (FONSECA, 1997). A sociedade hindu, ao contrário da hebraica, considerava os cegos como pessoas de grande sensibilidade interior, pela falta da visão, e os estimulavam para o ingresso nas funções religiosas. A sociedade ateniense, por influência de Aristóteles, protegia seus doentes e deficientes, por meio de sistema em que todos contribuíam para manutenção dos heróis de guerra e de suas famílias. Desta forma, também agiam os romanos do tempo do Império. Isto gerou um questionamento a respeito de qual deveria ser a conduta frente às pessoas com deficiência: assisti-las ou readaptá-las ao trabalho. Durante a Idade Média, já sob a influência do cristianismo, os senhores feudais as amparavam e os doentes em casas de assistência por eles mantidas, com características próprias do regime servil. (FONSECA, 1997).

    A linguagem acompanhou e caracterizou o modelo assistencialista. As pessoas com deficiência eram denominadas de "miseráveis", "coitados" "o pobre de Deus", o "inocente de Deus", "o assistido", "les enfants du bon Dieu". (CRUZ, 2009).

    Essa ideia de ajudar por caridade não se restringia à Igreja Católica. Na Europa feudal e medieval, muitas pessoas com deficiência passaram a ser aceitas como partes de grupos para trabalhar nas terras ou nas casas de famílias. Todavia, sempre quando tinha alguma praga na plantação, elas eram as culpadas pelo mal social. Em consequência, milhares dessas pessoas vagavam em penitência para pagar as chagas ocasionadas à sociedade. Predominava o horror de ser diferente, pois poderiam ser acusados de males com os quais não tinham nenhuma relação, dentre os quais a magia negra e a bruxaria, práticas que os protestantes categorizavam e abominavam. Lutero, fundador do protestantismo, no século XV, recomendava que as crianças com deficiência devessem ser jogadas no rio. No século XVI, os leprosos holandeses  tiveram todos os seus bens confiscados pelo Estado para sustentar as boas almas que não foram castigadas pela lepra. (LOPES, 2007).

     Apesar de fazer crer na condição humana de segunda categoria, o paradigma assistencialista representou enorme avanço. Entretanto, trouxe consigo graves efeitos colaterais. O primeiro se deu com a disseminação da noção de que pessoa com deficiência deveria ser isolada, afastada por meio do confinamento, o que se exemplifica pelo surgimento de hospícios. Já o segundo ocorre quando esse sistema difunde a noção de invalidez, de inutilidade dessas pessoas, reforçando a ideia de que a perfeição do ser era o correto, a normalidade, o padrão, e que a pessoa com deficiência não passava de deformidade a receber cuidados por parte da caridade cristã. (CRUZ, 2009).

     Ainda nesse modelo, a igualdade dispensada a essas pessoas era geométrica, afirma Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2009, p. 111), "eis que, pela condição do nascimento, ela ficava sujeita a espaço social restrito, consistente em esperar a ajuda alheia". Desta forma, somente com o fim do período medieval e o surgimento das bases do liberalismo político, com a revolução científica, a germinação da Filosofia da Consciência, a Reforma Protestante e o nascimento do capitalismo, propiciou-se espaço para o paradigma da integração, o qual surge concomitantemente à igualdade aritmética formal, ou seja, de tratamento isonômico a todas as pessoas. Agora, o modelo caritativo do paradigma assistencialista começa a ceder espaço à visão profissionalizante e integrativa dessas pessoas (CRUZ, 2009), culminando com a fundação da
Work House, na Inglaterra, em 1723. (FONSECA, 1997).

    Olney Queiroz Assis e Lafayette Pozzoli (2005) reforçam a ideia de que é com a sociedade industrial e, consequentemente, com o Estado moderno, que se desenvolverá uma nova estratégia sobre o corpo humano. Agora, não mais para expô-lo ou mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, recuperá-lo e adestrá-lo. E é justamente nessa época, pós 1789, que vários inventos foram criados para propiciar meios de trabalho e locomoção às pessoas com deficiência, tais como a cadeira de rodas, as bengalas, os bastões, as muletas, os coletes, as próteses, as marcas, os veículos adaptados, as camas móveis etc. (FONSECA, 1997). Nesta época, o jovem francês Louis Braille cria método revolucionário capaz de unir perfeitamente os deficientes visuais ao mundo da linguagem escrita: o código Braille.

     Tudo isto é ajudado pelo fato de que, no Estado moderno, a criação legislativa rejeita a herança da Idade Média como a legislação da vadiagem (Inglaterra, 1530) e das ordálias, que  são propagadoras eminentes de pessoas com deficiências adquiridas (ASSIS; POZZOLI, 2005). Cesare Beccaria (2000) contribuiu para a eliminação das penas cruéis e mutiladoras, com sua obra Dos Delitos e das Penas. Observa-se significativo avanço desse paradigma frente aos seus antecessores. Todavia, grandes problemas ainda haveriam de ser transpostos pela sociedade.

     Como exemplo, tem-se a ideia dominante de que era a pessoa com deficiência quem deveria se ajustar, ou buscando a sua cura, ou sua adequação à sociedade. Esse pensamento coloca sobre os ombros dessas pessoas, não bastassem as dificuldades inerentes à própria deficiência, mais um desafio: a adaptação social. Para tanto, escolas especiais 
e oficinas de trabalho foram criadas, o que proporcionava, por um lado, grande progresso nos seus tratamentos, mas por outro, criava um universo paralelo e ainda distinto do mundo real, que só contribuía na manutenção da segregação. (CRUZ, 2009).
 

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