sábado, 26 de março de 2011

CONTO FOTOGRAFADO - O PARTEIRO DA ILHA DOS MARINHEIROS

                                   Ilha dos Marinheiros - Porto Alegre/RS

O PARTEIRO DA ILHA DOS MARINHEIROS

        Ninguém nunca soube exatamente de onde ele veio, nem quando nasceu. O que se sabe, é que seu Cleto – Anacleto Figueira – viveu boa parta da sua vida num pequeno casebre as margens do Guaíba, mais precisamente na Ilha dos Marinheiros.
        Hoje, se perguntarmos para os moradores mais antigos daquela região se sabem quem foi seu Cleto, teremos uma surpresa: poucos lembram da sua existência.  Dona Francisca, nascida, criada e vivida na Ilha dos Marinheiros, hoje com 75 anos de idade, diz que a sua falecida avó contava de um senhor muito velhinho que tinha ajudado muita gente a nascer. Seu Cleto era parteiro, coisa nada comum, visto que tal ofício sempre fora exercido pelas mulheres.
        O parteiro era famoso por suas mãos abençoadas. Nunca se soube de mulher alguma que tivesse morrido durante um parto realizado por ele, nem de criança que não tivesse vingado se seu Cleto fosse o comandante de tão belo espetáculo.  Quando a coisa apertava, vinha gente de todos os cantos de Porto Alegre atrás de seu Cleto. Criança enrolada no cordão, mulher com bacia pequena...  A tudo as mãos do seu Cleto davam jeito. Era que nem médico. Dele, os homens não tinham ciúmes, dele as mulheres não se envergonhavam... Nem podiam... Dependiam dos seus conhecimentos, confiavam na precisão com que ele puxava os bebês das garras da morte... Nascer com segurança era coisa que com seu Cleto acontecia. Não perdia mãe nem criança. Nunca mesmo.
        O velho parteiro vivia sozinho numa pequena casa de madeira que volta e meia era alagada pelo Guaíba, e ele então refugiava-se no seu barquinho.  Nunca queixou-se da sua condição. Amava o lugar onde vivia e não saberia acordar e dormir em outro canto de Porto Alegre que não ali, na Ilha dos Marinheiros. Certa feita, após salvar uma senhora da alta sociedade porto alegrense que por muito pouco não morrera durante o parto,  seu Cleto recebeu como agradecimento uma generosa recompensa: um terreno próximo aos Campos da Redenção.  Nunca tomou posse do terreno, embora exibisse a escritura para quem quisesse ver. Sua vida estava ali, naquela pequena ilha onde ele transitava com seu barquinho, ajudando gente a vir ao mundo.
        Porém, orgulho mesmo seu Anacleto tinha era das inúmeras crianças que trouxera  à vida. Quando perguntavam a ele quantos guris e gurias tinha colocado no mundo, ele sorria e encolhia os ombros. Perdera a conta há muito tempo. Dona Francisca da Ilha dos Marinheiros, uma das únicas moradoras que sabe quem foi seu Cleto, acrescenta vaidosa: “seu Cleto era morador da ilha assim como nós... homem simples e pobre, mas que ajudou muita gente a vir a esse mundo... Sabe-se lá se o senhor mesmo que aqui está me perguntando essas coisas só não está aqui por causa do seu Cleto? Quem garante que um avô ou uma avó sua não foi puxada para a vida pelos dedos do seu Cleto?”
        E dona Francisca tem razão. Se andarmos pela Rua da Praia, naquele mar de gente, impossível saber quantos ali só existem porque seus antepassados foram salvos da morte eminente pelas mãos abençoadas de seu Cleto, o parteiro da Ilha dos Marinheiros.
        Existiu apenas uma criança que seu Cleto não conseguiu salvar. Era uma noite fria de inverno e o Guaíba estava revolto pelo vento.  Após ter sido chamado para assistir uma moça cujo trabalho de parto já se prolongava por quase um dia inteiro, seu Cleto pegou o barquinho e cortou a escuridão das águas. Não chegou ao destino, nem conseguiu ajudar o bebê que acabou morrendo asfixiado ainda no corpo da mãe.  Seu Anacleto sumiu sem deixar vestígios. O barquinho de madeira e o velho parteiro das mãos abençoadas e que não perdia criança, nunca foram encontrados, e seu casebre na Ilha dos Marinheiros acabou sendo levado por uma das enchentes na Ilha dos Marinheiros.
        A imensidão do Guaíba engoliu para sempre o homem que ajudou a povoar a bela Porto Alegre com suas mãos poderosas. Eis aí o mistério da vida e a perspicácia da morte... Não fosse Dona Francisca lá da Ilha dos Marinheiros ainda se lembrar, e nunca saberíamos que Porto Alegre um dia já teve um parteiro, e que o Guaíba, cartão postal da cidade, ajudara a sepultá-lo para todo o sempre no esquecimento das suas águas.

por Cristiano Refosco (Contos Redentinos)
                                            
                                        Ilha dos Marinheiros - fotos feitas com o meu celular, de dentro de um ônibus, a caminho da Jornada da Kinder - 19/03/2011


                                                               Contraste Social


                                          evidenciado pelas casas simples,

                                             pelas pupilas impressionadas das crianças...


                                          Uma  realidade tão reciclável


                                                 e indigesta, quando comparada as mansões que jazem pesadas ali pertinho...


                                                  De uma dessas ribanceiras, partia seu Cleto com seu barquinho, a arrancar das garras da morte meninos e meninas...





                 Parabéns, Porto Alegre... 239 anos

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