Existem pessoas que acreditam que são feitas de vidro — e que, portanto, podem se estilhaçar facilmente. Basicamente, os afetados se convencem de que se transformaram em vidro e, apesar de serem capazes de desempenhar qualquer atividade, se tornam extremamente cautelosos e evitam o contato com outros indivíduos para evitar o risco de quebrar seus frágeis membros.
De acordo com a BBC, esse distúrbio psiquiátrico foi descrito pela primeira vez durante a Idade Média e, assim como ocorreu com diversos casos de histeria coletiva, o problema se tornou bem popular na época. Um dos afetados mais ilustres foi o Rei Carlos VI de França, que não permitia que ninguém o tocasse por medo de que ele se quebrasse em centenas de pedacinhos — e vivia enrolado em cobertores para se proteger.
Carlos VI da França |
Existem descrições do problema em várias enciclopédias médicas que circulavam pela Europa. Inclusive há uma referência literária sobre o distúrbio em “O Licenciado Vidraça”, de 1613, um dos relatos que compõem as “Novelas Exemplares” de Miguel de Cervantes — o mesmo autor de “Don Quixote” —, no qual o herói da trama é envenenado e desenvolve a ilusão. Até mesmo Descartes divagou sobre o problema em seu “Meditações sobre Filosofia Primeira”.
Após 200 anos de popularidade, os casos de pessoas que achavam que eram de vidro começaram a desaparecer, e a partir do século 19 os registros de indivíduos afetados pelo distúrbio foram se tornando gradativamente mais raros. Uma das teorias é a de que o vidro era um material novo, quase místico, quando o distúrbio surgiu. Mas, com o tempo, ele foi se tornando cada vez mais ordinário, mudando a percepção que a sociedade tinha dele.
E o distúrbio do vidro não foi o único relacionado a novidades tecnológicas que surgiram ao longo da História. No século 19, quando o cimento era uma coisa nova, também foi registrado um problema mental envolvendo o material. E não precisamos voltar muito no tempo para encontrar mais exemplos: nas últimas décadas não faltaram pessoas convencidas de que organizações obscuras seriam capazes de ler mentes através de geringonças eletrônicas!
Voltando ao distúrbio do vidro, curiosamente, apesar de os casos terem praticamente desaparecido, de acordo com a BBC, Andy Lameijn, um psiquiatra interessado no assunto, conseguiu descobrir registros a respeito de pacientes isolados pós-século 19. Um deles foi uma mulher que foi admitida em um hospital holandês nos anos 30 por acreditar que suas pernas e coluna eram de vidro.
Segundo Lameijn, o medo que a mulher sentia de ter contato com outras pessoas era tão grande que ninguém podia se aproximar dela, nem mesmo as enfermeiras. Outro caso foi registrado em meados dos anos 60, mas em nenhuma das ocasiões o psiquiatra encontrou muitos detalhes sobre o que poderia ter motivado o surgimento de um distúrbio medieval em pacientes mais contemporâneos.
Isso até o próprio Lameijn se deparar com um jovem diagnosticado com o problema há alguns anos. Esse rapaz relacionava sua crença de ser de vidro com a ideia de transparência — e de poder desaparecer e reaparecer segundo sua vontade. Aparentemente, o paciente havia sofrido um acidente recentemente, e sua família acabou se tornando superprotetora.
Sendo assim, Lameijn especula que uma possibilidade seja a de que o distúrbio tenha surgido como forma de o rapaz conseguir reconquistar sua privacidade e lidar com os familiares zelosos. Isso significa que, nos dias de hoje, esse tipo de problema psiquiátrico pode estar associado com as ansiedades da sociedade com respeito à vida moderna, como é o caso da fragilidade, da transparência e da conquista do espaço pessoal em um mundo superpopuloso.
O medo de ser de vidro e poder se estilhaçar ainda pode ser interpretado como um temor exagerado de sofrer algum tipo de humilhação social, algo sobre o qual todo mundo sente receio. Desta forma, apesar das diferenças com respeito às motivações na Idade Média, o distúrbio — tal como outros tantos que surgiram com o passar dos séculos —, possivelmente reflete os anseios de indivíduos conforme eles se ajustam para viver em sociedade.
FONTE: megacurioso, BBC
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