Principal causa de demência entre pessoas com mais de 60 anos, a doença de Alzheimer tem efeitos devastadores – e inconfundíveis. À medida que ela avança, os neurônios morrem, conduzindo o paciente a um estado de alienação crescente. Sua vítima é acometida por alterações de comportamento, sofre de desorientação espacial e apresenta dificuldade para realizar tarefas simples do dia a dia, como alimentar-se ou vestir-se sozinha. Ensimesmada, não reconhece mais os amigos nem a família. Com o tempo, perde até mesmo a identidade. Tais sintomas, que caracterizam os estágios mais avançados, são conhecidos pela medicina há mais de um século, desde a descoberta da doença, em 1906. Agora, os especialistas esforçam-se para diagnosticar o Alzheimer em sua fase inicial, a fim de garantir a suas vítimas uma vida mais longa e com mais qualidade. Eles têm sido bem-sucedidos. Três em cada dez doentes têm o distúrbio identificado precocemente. Uma década atrás, essa proporção era de um para dez.
A detecção de qualquer doença grave em seus primeiros estágios é essencial para o sucesso de seu tratamento. No caso do Alzheimer, isso é ainda mais verdadeiro por se tratar de um dos poucos recursos disponíveis no controle do distúrbio. O mal não tem cura e os medicamentos disponíveis são capazes de frear sua evolução por apenas cinco anos, em média. "Quanto mais cedo os sintomas forem identificados, mais tem-po o paciente manterá suas funções cognitivas preservadas", diz o psiquiatra Orestes Forlenza, do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Graças à descoberta do Alzheimer em seu início, a aposentada Antonieta Bracco Shulz, de 79 anos, consegue ter uma rotina razoavelmente normal. Há seis anos, preocupada com as falhas de memória, ela procurou um médico e logo iniciou o tratamento contra a doença. Hoje, Antonieta continua a morar sozinha, faz compras sem a ajuda de ninguém e mantém um hábito adquirido na adolescência – o da leitura diária. Ainda assim, é inevitável que seu quadro sofra deterioração. A cinquenta páginas do fim de Os Irmãos Karamazov, do russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), Antonieta não se recorda de quase nada a respeito da história sobre a conturbada relação de um pai com seus quatro filhos. "Eu tenho consciência de que jamais me lembrarei daquilo que esqueci", diz a aposentada. "E isso me faz viver aprisionada num pesadelo." Durante a leitura, nada lhe tira a atenção. Ao fechar o livro, no entanto, ela percebe que muito pouco do que leu foi efetivamente registrado em sua memória. "Não consigo me lembrar nem das informações mais básicas, como o nome dos personagens principais", conta ela. "Eu não abandono o livro, porque a leitura em si me proporciona muito prazer." Desses momentos de satisfação, Antonieta tem lembrança.
O caso da aposentada é um exemplo emblemático das diferenças entre os primeiros sinais do Alzheimer e os lapsos de memória típicos do envelhecimento. Se for ajudado com pistas, um idoso não deixa de lembrar-se de um fato recente. Para o paciente com Alz-heimer, a nova informação não é nem registrada pelo cérebro. "Quando aplicamos um mesmo teste de memória num idoso e num jovem, se não houver limite de tempo para a sua realização, os dois farão a mesma pontuação", diz o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Durante o envelhecimento, a membrana dos neurônios enrijece, dificultando a saída de resíduos tóxicos e a entrada de nutrientes. As células cerebrais passam, então, a funcionar em ritmo mais lento. Com o tempo, a comunicação entre elas enfraquece, daí os lapsos. Não há praticamente morte neural. O processo de instalação da doença de Alzheimer é infinitamente mais cruel. "Deixado a seu próprio curso, o distúrbio destrói de 30% a 50% de todos os neurônios nos cinco primeiros anos da doença", explica Ivan Hideyo Okamoto, neurologista do Hospital Albert Einstein e da Unifesp.
Na doença de Alzheimer, a destruição dos neurônios começa no hipocampo, área cerebral onde ocorrem o armazenamento das memórias recentes e o processo de aprendizagem. Os mecanismos envolvidos no distúrbio ainda não foram totalmente desvendados pela medicina. Sabe-se que duas proteínas contribuem para o seu aparecimento – a tau e a beta-amiloide, responsáveis, respectivamente, pela estrutura celular e pelo transporte de gordura para o núcleo das células. Produzidas em grandes quantidades, nos doentes de Alzheimer elas se depositam ao redor e no interior dos neurônios, sufocando-os. Quanto maior o número dessas células atingidas, mais severa é a deterioração das funções cerebrais. A idade é um dos poucos fatores de risco estabelecidos para o Alzheimer. Estudos de observação mostram que um estilo de vida saudável, repleto de atividades intelectuais, pode adiar o surgimento da doença, mas não impedir a sua manifestação.
Há 25 milhões de doentes de Alz-heimer no mundo, 1,2 milhão deles no Brasil. Com o aumento da expectativa de vida, nos próximos trinta anos esse número deve triplicar. Depois do câncer, o Alzheimer é a doença com o maior número de medicamentos em estudo – 91, em centros de pesquisa espalhados por diversos países. Os investimentos não se resumem apenas à descoberta de remédios mais eficazes. Os pesquisadores se dedicam à criação de instrumentos mais precisos para o diagnóstico precoce do Alzheimer. Nessa área, um teste de memória tem se revelado bastante promissor. É o TYM (sigla em inglês para Teste Sua Memória), desenvolvido por neurologistas do Hospital de Addenbrooke, na Inglaterra. Aplicado até agora em 700 pacientes, ele mostrou ter o dobro de acurácia em relação ao questionário mais utilizado hoje em dia. O TYM ainda precisa ser testado em um grupo maior de pessoas, de culturas variadas, antes de ser incorporado à conduta médica.
Em novembro de 1906, num congresso de psiquiatria realizado na cidade alemã de Tubingen, o neuropatologista Alois Alzheimer (1864-1915) proferiu uma palestra que entraria para a história da medicina. Sob o título "Uma enfermidade específica do córtex cerebral", ele descreveu o quadro da senhora Auguste D. Aos 51 anos, em 1901, depois de ter em público um ataque feroz de ciúme do marido, ela foi internada com problemas de comportamento no Hospital Municipal de Lunáticos e Epiléticos, em Frankfurt, onde Alzheimer trabalhava. O local era um sanatório famoso por tratar de usuários de drogas mediante terapias humanizadas, como banhos terapêuticos e psicoterapia. Não havia explicação para a mudança tão brusca de comportamento de Auguste. Ela sempre se mostrara recatada e saudável em seus hábitos. O único dado destoante era que, seis meses antes, Auguste começara a ter lapsos de memória e apresentar dificuldade para se expressar. Esses déficits cognitivos se agravaram até sua morte, cinco anos mais tarde. Durante a necrópsia da paciente, Alzheimer analisou amostras do tecido cerebral dela. Foi então que ele observou o acúmulo de uma "substância incomum" no córtex cerebral. A tal substância, mais tarde se descobriria, era a proteína beta-amiloide. Ele descreveu seu achado da seguinte forma: "Uma patologia neurológica de causa desconhecida que envolve déficit de memória, alterações de comportamento e incapacidade para as atividades rotineiras". O distúrbio ganhou o sobrenome do neuropatologista em 1910, quando o psiquiatra Emil Kraepelin (1856-1926), também alemão, descreveu a descoberta de Alzheimer em seu Manual da Psiquiatria, uma das principais referências médicas no século passado. Até então, todos os lapsos de memória eram atribuídos sobretudo à senilidade ou ao uso de substâncias entorpecentes. Por muito tempo, não foi dada a devida importância ao achado de Alzheimer. Não por desleixo, mas por uma questão demográfica. Como até a II Guerra Mundial a expectativa de vida na Europa e nos Estados Unidos mal chegava aos 60 anos, a doença descrita por ele era rara.
Por Adriana Dias Lopes
FONTE: http://veja.abril.com.br/
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