XY
Fevereiro quente. Nada para fazer em casa além de destilar no calor. O Ric entra no MSN e põe pilha para irmos numa boate na Cidade Baixa. Vou, não vou, vou, não vou, Vou! Total, calor lá ou calor aqui, pelo menos vamos ver gente!
De cara deu pra perceber que a festa era estranha. Existe uma diferença entre estranha e alternativa, e nesse caso, a festa era estranha mesmo. Gente bêbada esbarrando, meninas dançando de mãos dadas ao som de Michel Teló, e num canto, sentadas num sofazinho debaixo da escada, as duas ninfas: uma loira e a outra morena.
Eis que dali a pouco a ninfa morena levanta e vem em nossa direção com um copo de cerveja na mão. Aí caiu a ficha. Ao vê-la de perto, eu e o Ric percebemos tratar-se de uma travesti, daquelas bem femininas, é verdade, mas ainda assim um exemplar nítido do terceiro sexo. A ninfa travesti morena então interpela o Ric e despeja:
- Seguinte, minha amiga ali debaixo da escada está a fim de ficar contigo...
Olhamos para a ninfa loira com olhos mais investigativos. Tão travesti quanto a ninfa morena, a ninfa loira parecia aguardar com expectativa a resposta do meu amigo.
- Não rola... – respondeu ele educadamente.
Não me agüentei:
- Aí, hein! Arrebatando os corações transexuais da festa!
Claro que sei a diferença entre travestis e transexuais, mas nessas horas, tudo vai dentro da mesma gaveta. No fundo, é tudo XY. Cortar ou não o pinto fora não quebra o Y do cromossomo...
Mas, voltemos a festa das esquisitices... Tinha começado a tocar um funk bem bagaceiro, daqueles cuja letra não ouso colocar nesses escritos, quando eu e o Ric olhamos para debaixo da escada e vemos a ninfa travesti loira agarrando um carinha em cima do sofá. Agarrando não: atacando... Ou melhor, deitando em cima dele.
- Caraca, ele não deve saber que ela é uma travesti! – manifestou-se indignado o meu amigo.
- Capaz, Ricardo... Qualquer um vê que ela não é mulher...
Se o rapaz sabia ou não, naquela hora não tínhamos como averiguar. O fato, é que ele parecia muito bêbado e que num determinado momento da festa, armou-se uma rodinha de gente que ficou aplaudindo o show de sensualidade que os dois estavam dando. Deitados no sofazinho debaixo da escada, a ninfa travesti loira e o rapaz bêbado sovavam-se mutuamente como se fossem massa de cacetinho.
Entre uma cerveja e outra, meu amigo foi ficando cada vez mais de cara com aquela situação. Seja por solidariedade do gênero masculino, ou seja por não gostar de ver ninguém comprar gato por lebre, assim que viu o rapaz sair de baixo da ninfa travesti loira, Ric o seguiu em direção ao banheiro.
- Ô, meu... Sabia que aquela guria com quem tu tá ficando é uma travesti?
O cara ficou perplexo. Levou as mãos ao rosto como se fosse chorar:
- Porra, tá de brincadeira!
- Viu só, falei que ele não sabia– cochichou Ric no meu ouvido.
Bem, não era nenhuma tragédia grega, mas para o cara que supostamente havia sido enganado, aquilo era quase o Armagedom:
- Porra, estou bebendo desde as sete horas da manhã e já não vejo nada! Não acredito que fiz isso! Nunca tinha ficado com ninguém de outro sexo em toda a minha vida! – lamentava-se o rapaz quase chorando.
“Alguém de outro sexo”? Bem, vamos dar um desconto. O piá estava bêbado e havia acabado de descobrir que a loira que ele estava beijando tinha pinto – ou pelo menos um Y no lugar do X.
Não consegui deixar de ser sarcástico. Já que estamos no inferno, vamos abraçar o capeta, assim diz Dona Almerinda, vizinha minha de porta. Aproximei-me do rapaz e tentando acalmá-lo, disse:
- Mas olha só... Quase ninguém viu... Tirando a hora em que a galera aplaudiu vocês, de resto poucas pessoas perceberam que tu tava ficando com uma travesti...
Horrorizado – sim, essa é a palavra para definir o olhar do guri -, ele levou a mão a boca:
- Aplaudiram a gente? Tá brincando!
- Sim, na hora que o fotógrafo estava tirando as fotos... Tu não viu nada disso?!
- Meu Deus, não acredito! Tiraram até foto?!
- Calma, cara... No máximo vão colocar as fotos no site da boate, nada demais... E total, só dava pra ver a tua calça, pois tu tava o tempo todo embaixo da loira... Ou do loiro, sei lá...
O guri se acalmou um pouco:
- É, tem muita gente com a calça parecida com a minha... Não tem mesmo como me identificar...
Sentindo que havia feito a sua boa ação da noite – ou do dia, já que era quase quatro horas da manhã -, o Ric pegou outra cerveja, mas não se deu por satisfeito. Iria tirar aquela história a limpo. Quando a ninfa travesti morena passou por ele, no meio da pista, Ric a pegou pelo braço e perguntou:
- Aquela tua amiga loira que estava a fim de mim é travesti, né?
Pára tudo.
A ninfa travesti morena ficou paralisada por um quinto de segundo. Olhou meu amigo nos olhos com uma mistura de fúria e indignação e por fim, manifestou-se:
- Eu me nego a responder isso. Me nego...
Bateu o cabelo e sumiu na pista. Quem cala consente.
Bem, tínhamos deixado aquela história para lá, quando já cansado, sentei um pouco no tal sofazinho debaixo da escada. Olhei para o lado, e lá estava a ninfa travesti loira, sozinha e com uma cara de poucos amigos. Será que a loira está assim porque o rapaz descobriu que ela não é mulher e largou fora? – pensei eu com meus botões.
Nesse momento, chegou a ninfa travesti morena e sentou-se ao meu lado:
- Escuta, porque tu me perguntou aquilo agora há pouco?
Hã?! A travesti estava me confundindo com o Ric, só podia.
- Não te perguntei nada, quem perguntou foi o meu amigo.
Chamei o Ric. Ele que resolvesse aquela situação com as duas ninfas. Total, quem pariu Mateus que o embale.
Aí, começou a parte mais engraçada de todas. Muito séria e didática, a travesti morena explicou ao meu amigo:
- Olha, não sei de onde tu tirou que a minha amiga é uma travesti...
A ninfa loira não dizia nada, só ouvia o que a outra falava.
- Ela é ou não travesti? – baleou o Ric com delicadeza, mas com objetividade.
- Não. Minha amiga é hermafrodita...
Santa balaquice, Batman! Me segurei para não rir. Sabia que travestis são muito criativos com roupas e coreografias, e possuidores de altos “dons travestísticos”, mas não sabia que eram capazes de inventar uma história tão mirabolante como aquela, em plena madrugada de um fevereiro escaldante.
- Hermafrodita? Sério?! – inquiriu Ric com ar desconfiado.
Claro que ele não está acreditando nisso, pensei eu... Mas, vamos ver aonde essa história vai acabar...
- Sim, ela nasceu com os dois sexos – sentenciou a ninfa travesti morena – Nunca viu um caso assim na TV? Deu esses dias no Discovery...
Ric não deu tempo:
- Mesmo assim... Se ela nasceu com os dois sexos, o masculino predomina sobre o feminino... Logo, ela não é mulher...
Tentei entender a teoria de predominância a qual meu amigo se referia... Se ele estava se lembrando de alguma aula de genética do ensino médio, ou se havia acabado de formular um conceito à revelia.
A ninfa travesti morena parecia inconformada com aquela dedução do Ric, e insistia na tese de que a sua amiga ali do lado, que nada dizia, apenas ouvia e observava, era sim hermafrodita.
- Existe uma diferença entre hermafrodita e travesti... – explanava ela com ar professoral, sutilmente dando a entender que éramos burros ou no mínimo mal informados.
Foi então que aconteceu o grande lance da noite. Movida pela mais avassaladora das indignações, a ninfa travesti loira, que até então jazia calada, ergueu seu corpo sobre o meu amigo, e tal qual uma esfinge, revelou:
- Olha aqui, queridinho... Eu sou travesti sim! Algum problema?!
Ric ficou mudo e desconcertado. A ninfa travesti morena, que tanto latim havia gasto para tentar convencer o meu amigo da história do hermafrodita, olhou para a travesti loira e fez uma cara de desdém do tipo “cala essa boca, imbecil”.
Ai, meu Deus... Vamos ter confusão, pensei eu. Já estive em festas onde travestis tinham brigado com não travestis e não me sentiria nada confortável em fazer parte daquilo. Puxei Ric pelo braço e educadamente fomos para a pista.
- Viu só que cara de pau? Inventar que a outra é hermafrodita?! – indignava-se ele enquanto voltávamos pelas ruas da Cidade Baixa.
Eu ria muito. A festa estranha com gente esquisita tinha rendido uma história no mínimo engraçada.
- Vou escrever um conto sobre isso – anunciei ao meu amigo quando nos despedimos.
Foi a vez dele rir:
- Um conto sobre travestis, bêbados e hermafroditas? E como vai ser o final? Vai inventar que levamos uma surra das travestis?
Bati nas suas costas me despendido e revelei sorrindo:
- Ainda não sei como vai ser o final... Nunca sei como acabar um conto!
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